terça-feira, 4 de abril de 2017

o instante raro
por pouco imperceptível
os minutos antes de você colocar os dedos
entre as minhas coxas
eu sempre quase premedito a intenção das suas mãos
e a pele fina arde antes mesmo do toque
e cintila com uma obstinação
maior do que quando de fato te sinto
é o momento raríssimo
que antecede a vontade que se dissipa
tão rapidamente
tão injustamente
que parece um espaço vazio
sempre prestes a ser preenchido
por alguma coisa muito grave 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

faz um ano, né. eu queria te contar que eu comecei a ouvir angela ro ro de madrugada e que realmente aconteceu o que você falou que aconteceria, que eu ia decorar um trecho dos sobreviventes sem querer. tipo a oração do peregrino russo. fora isso, não aconteceu muito. me espanta que eu perca o interessa tão rapidamente. depois que a gente desligou o telefone e eu confessei que não conseguia distinguir a linha que divide o profundo dos episódios imprecisos, não aconteceu muito. não que os episódios imprecisos não tenham sua importância. mas aconteceu de eu descobrir que eu gosto muito de ficar. que eu tenho uma facilidade incrível em reordenar prioridades, especialmente quando algo horrível acontece. tanto tempo tentando te fazer entender o quanto eu era passageira. mas nem é, eu queria mesmo é criar vínculos que eu julgo serem enormes demais com pessoas que não fazem ideia do quanto estou me jogando naquilo. eu já te disse que me espanta também que, quando criança, eu sempre esquecesse um pouco como era a voz do meu pai se ele não ligasse no último domingo? pois é, acho que ficou na minha cabeça por um tempo assim exagerado aquele poema sobre a arte de perder. e a voz importa. a voz importa muito. tanto que o coração ficou um fiasco logo antes de eu dizer oi, de eu dizer nossa que estranho te ouvir de novo. é que no fundo a gente sempre lembra ou faz um esforço danado pra desenhar de novo qualquer indício. em todo caso eu posso descrever a sua voz, e ela é indecisa. lembra de uma madrugada de sábado que a gente bebeu um monte, cerveja quente e um troço diluído com tang, sei lá, só tinha pessoas chatas nesse dia e eu disse pra você que a gente era melhor em dupla. então a gente foi pra casa, deitar num colchão com lençol sujo e uma fila de copos pelo quarto. eu fiquei tão doida, que depois de dizer que a gente se bastava eu disse que não, que não tinha saída. e não tem mesmo não, tem só caminhos mais práticos. é que naquela noite, quase de manhã, parecia bastante viável nós dois sozinhos no mundo. parecia um caminho prático só ficar ali, sem trocar lençol ou catar os copos sujos acumulados.

sábado, 23 de julho de 2016

navio pirata

só o mar interessava
e havia aquela reverência
por todos os barcos parados na orla
havia a vontade de voltar
e a vontade de voltar
é a máquina incansável da fuga
é um pouco triste
não esperar qualquer coisa
essa imponência azul do lado de fora
os rostos envelhecidos pontilhados no largo
a ladeira dos aflitos em queda
tudo isso
já são acontecimentos extraordinários
em dias com tão pouco
não precisaríamos de mais nada


os russos mais uma vez com a razão:
tem que existir mais
e tudo que existe
existe mais na distância
ainda que a folha de cinco pontas
se encaixe perfeitamente na palma da mão
existe mais
porque o que eu desconheço é sempre melhor
porque as coisas exteriores têm pressa
o mundo demanda
em cada esquina uma saída definitiva
as estradas de Whitman demandam
e olha só
é inadiável


uma coisa é certa
alguns seres humanos
guardam dentro de si uma peça irreprimível
instalada nas dimensões mais obscuras e ocultas
alguns explodem surpreendentemente
alguns moram em condomínios fechados
ou é ou não é
como num sistema filosófico
uma equação de lógica
um sempre verdade, outro sempre mentira

quarta-feira, 29 de junho de 2016

tantálica II

o céu só escurece às dez da noite
nós estamos no obelisco da vitória
prestes a entender o que nenhum anjo sabe

tantálica


o restaurante tailandês 
é a minha lembrança mais nítida em três anos
todos aqueles copos de iogurte espalhados sobre a mesinha
sim, o restaurante tailandês
e talvez a quantidade irresponsável de cigarros
o fim é sempre um prestar de contas
(consigo mesmo)
racionalizo
os sentimentos não passam de uma consequência de reações psíquicas
como se o corpo fosse apenas um lugar burocrático
é aquela coisa
you think it's love, it's just a midnight journey
nós somos tão humanos e isso me desaponta
é preciso coragem e um certo apreço ao tédio
os assuntos inexplicáveis devem permanecer na seção do inexplicável
vamos guardar essa fragilidade toda
porque a vida consiste mesmo em cinco acasos ou seis
os encontros mágicos são bilhetes premiados
papeizinhos amarelados
então repita em russo, três vezes, que não é amor
que é só uma viagem noturna
que não existe nenhum motivo maior que três girassóis
é só um gosto amargo de caneta bic
o grande segredo da engrenagem
é a triste função dos dentes helicoidais
girando girando girando